A vida não para de acontecer. Às vezes temos bons encontros e às vezes maus encontros. Segundo a esquizoanálise, se as forças reativas dominam em mim eu vou sempre viver numa montanha russa de altos e baixos dependendo do acaso. Mas nós não precisamos ser vítimas do acaso. Para isso precisamos ter uma vida ativa e perceber tudo como necessário, tudo de bom, ruim, cômodo ou incômodo.
Mas a maioria das pessoas não aprendeu a fazer isso quando era criança ou adolescente. Muito pelo contrário. A família é o primeiro lugar onde a criança vai aprender a se culpar ou culpar os outros pelo que lhe acontece. E então vai passar a vida compensando por essa sensação de inadequação ou injustiça. Essa compensação é tudo o que o sistema capitalista quer: alguém que se sente desvalorizado buscando algum tipo de salvação, seja na religião/espiritualidade, seja no trabalho, no sexo, sempre buscando algo fora de si, para lidar com uma falta que foi instalada, mas que na verdade, não existe.
Quando algo negativo nos acontece podemos lidar da maneira reativa descrita acima (achando um culpado) ou da maneira ativa. Quando somos ativos conseguimos digerir, vomitar ou isolar o acontecimento. Para sabermos se fizemos isso ou não basta observar se nós ficamos pensando no acontecido por mais do que 20 minutos. Se algo continua nos perturbando é porque não conseguimos digerir, vomitar ou isolar.
Hoje eu vou falar sobre a capacidade de vomitar, que a partir de agora nomearei de extravasar. Apesar de achar que vomitar é um termo excelente para o fato de colocarmos para fora o que está nos intoxicando, prefiro usar extravasar pois descreve melhor o que efetivamente está acontecendo. A situação abaixo aconteceu com minha filha (14 anos) há alguns meses:
A nossa cachorra, escolhida e resgatada de uma acumuladora de cachorros, pela minha filha derrubou e quebrou a escultura que ela passou dias fazendo e era uma lição para escola. Ao ver a cena de tudo quebrado, ela começou a chorar e gritar. “Por que, por que?!!! e “Tava tão bonito. Eu demorei tanto!!!!” E chorava. Vários sentimentos e pensamentos passavam por ela: raiva da cachorra, raiva dela própria por ter colocado a lição no lugar errado, tristeza de ter quebrado algo para o qual se dedicou, medo de não entregar a lição.
Eu fiquei perto dela, na maior parte do tempo em silêncio mas algumas vezes eu dizia coisas como “É quebrou” ou “É, estragou tudo”, apenas repetindo algumas frases que ela falava. Eu não tentei ajudar, consolar, consertar. Eu estava tranquilo e sentia que o que ela precisava era colocar tudo isso pra fora. Eu sabia que ela estava chorando por muito mais do que apenas a lição de casa. Ela usou essa situação para abrir os portões e colocar para fora emoções que estavam há muito tempo em seu sistema. Não sei exatamente o que ela estava extravasando e sinceramente, não importa. O que importa é que eu estava ao lado dela e através do meu não fazer, do meu não interferir e da minha presença com confiança, ela estava aprendendo como extravasar ou vomitar o que não estava fazendo bem pra ela.
Após 30 minutos de choro com acolhimento, chegou um amigo dela aqui em casa. Ela estava com o rosto de choro, mas nem ligou. Pegou os pedaços de argila e mostrou pra ele: “Olha o que a cachorra fez”. Ele olhou e disse, “Vamos consertar?”. Os dois sentaram e juntos consertaram tudo, sem nenhuma ajuda de um adulto, sem nenhuma sugestão de como fazer, sem nenhuma reflexão ou ensinamento sobre a importância de cuidar das coisas.
Eu acredito que essa prática de extravasar, repetidas vezes ao longo da infância e da adolescência é o que vai permitir que ela tenha uma vida ativa e potente enquanto adulta. Ela vai aprender ao longo do tempo como extravasar sem necessariamente, precisar chorar ou gritar. Quando tiver um mau encontro e sentir emoções em seu corpo, talvez tenha a memória de que não é culpa dela nem de ninguém o que aconteceu, mas que é sua responsabilidade lidar com essas sensações corporais para que não vire uma pessoa ressentida.
Nós, pais, mães, educadores que não fomos criados deste jeito temos dificuldade de ficar na presença de alguém que está extravasando, mas assim como não mandamos alguém que está vomitando, segurar o vômito, também não devemos mandar as crianças segurarem as emoções que estão envenenando, dentro delas.
(Se precisar de apoio para lidar com essas ou outras questões, escreva para marcelo@marcelomichelsohn.com)
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