Quando assistia a uma aula sobre o Anti-Édipo de Gilles Deleuze e Felix Guattari, ministrada pelo Luiz Fuganti, me deparei com a seguinte frase: "Quando o desejo perde a imanência, pode ter certeza, há um padre por perto. Os padres modernos são os publicitários, que estão na ponta do capitalismo".
Ao ouvir a frase, pensei: "Além dos publicitários, hoje temos os influenciadores. Como pensar o papel dessas pessoas na atual versão da máquina capitalística?". E foi assim que surgiu este texto.
Antes de entrar no tema das diferenças entre os publicitários tradicionais e os influenciadores, preciso fazer uma introdução a como entendo o desejo e a falta. Se você já conhece a Filosofia da Diferença e a Esquizoanálise, reconhecerá esses termos. Se é sua primeira vez, aproveite. Pode ser o início de um belo encontro.
Depois da discussão sobre o desejo e a falta, falarei sobre como as Redes Sociais (1a contato com a Inteligência Artificial) e os Large Language Models (2o contato com a inteligência artificial) estão explorando ainda mais a sensação da falta e oferecendo formas personalizadas de objetos ou objetivos ideais. Por fim, trarei algumas reflexões sobre como escapar deste tipo de captura.
Ao desejo nada falta. O desejo deseja desejar.
Isso é o oposto de como os psicanalistas mais tradicionais entendem o desejo. Para eles, o desejo necessariamente tem um objeto desejado. É o desejo que surge a partir da falta e que nunca vai se saciar. A falta está no princípio e no fim.
O desejo condicionado que vai em direção a um objeto para tapar um buraco está fadado ao fracasso. Porém esse desejo não é natural. Ele é fabricado. A falta é fabricada de fora para dentro.
Primeiro acontece a fabricação de um sujeito incompleto, ineficaz, inútil que vai passar a vida buscando sair deste buraco, tentando suprir essa falta com ideais. Estes ideais podem ser religiosos/espirituais, morais e/ou materiais.
Basta olhar para si e ao seu redor. Você verá sujeitos que se sentem fracos, inadequados, desvalorizados, feios, pecadores, impacientes, etc e que vivem buscando compensar estes "defeitos" ganhando mais dinheiro, recebendo elogios e consumindo coisas ou experiências.
Algumas vezes, a sensação da falta é aplacada por algumas semanas, dias ou horas, mas ela volta inevitavelmente. Não importa se a pessoa é um executivo, um funcionário, um desempregado ou um profissional liberal.
A Publicidade Tradicional e os Influenciadores
Enquanto os padres eram os principais fabricadores da falta e dos ideais no passado, mais recentemente outros atores se juntaram a eles: profissionais das áreas psis (psiquiatras, psicólogos e psicanalistas) tradicionais-conservadores e a máquina publicitária.
Essa máquina publicitária sofreu uma diferenciação significativa nos últimos 10 anos e há uma aceleração maior ainda nos últimos 2 anos. Desta maneira, acredito que a publicidade neste momento histórico não é apenas uma evolução, mas uma variação significativa que merece ser tratada como algo singular.
Sim, os publicitários ainda tem um papel importante em criar e disseminar os investimentos ideais, os objetos a serem desejados de forma intencional. Porém. mais recentemente, na atual fase do capitalismo, com o advento das redes sociais, todas as pessoas podem se tornar publicitários, seja criando memes, seja postando suas opiniões, seja vendendo seus próprios serviços e produtos.
Todos querem dinheiro e/ou fama. Isso por si só é a perseguição de um ideal. E neste processo servem como peças da produção capitalística, gerando a sensação de falta e oferecendo objetos ou experiências ideais a serem consumidos, com a promessa de acabar com essa falta.
Mas existe também uma aliança entre a publicidade tradicional com suas agências e os criadores de conteúdo nas redes sociais. Essa aliança, nem sempre explícita, deu origem aos chamados influenciadores.
Os influenciadores são os atuais padres nos sistemas capitalísticos modernos. Enquanto a publicidade tradicional tem um custo de produção alto e um alcance generalizado, através dos comerciais de TV ou os outdoors, os influenciadores tem um custo de produção baixíssimo e uma capacidade de atingir pessoas específicas.
A capacidade de atingir pessoas específicas decorre da primeira fase da inteligência artificial, as Redes Sociais. Elas fazem a curadoria do conteúdo criado e decidem quando e para quem estes conteúdos chegarão. Tudo isso é feito captando centenas de informações por segundo que damos de graça para essas empresas todas as vezes que ligamos nossos celulares. Elas processam essas informações em super-computadores que então definem matematicamente qual a melhor probabilidade de determinado conteúdo nos engajar. Nem sempre elas acertam, mas isso não é um problema. Isso faz parte do sistema. Quando uma sugestão do algoritmo não nos engaja, o algoritmo aprende mais ainda sobre nós e modifica seu modelo. Como a Rede Social pode fazer sugestões dezenas ou centenas de vezes por dia, todos os dias, suas capacidade de aprendizado e "melhoria" é muito alta.
E, por falar em inteligência artificial, sua segunda geração tem a capacidade de criar os conteúdos, seja em forma de texto, imagem, áudio e agora vídeo. Enquanto o facebook demorou 4 anos e 4 meses para atingir a marca de 100 milhões de usuários, o ChatGPT alcançou a mesma marca em 2 meses.
Ferramentas como o ChatGPT (OpenAi), Gemini (Google), LLAMA (Meta) e Claude (Anthropic) estão fazendo com que o custo de produção de conteúdo tenda a zero, e a capacidade de produção tenda ao infinito.
A máquina capitalística está prestes a conseguir inocular ideais quando quiser, quantas vezes quiser, com baixo custo e com precisão quase absoluta. A combinação dos algoritmos das redes sociais com a capacidade de produção dos inteligências artificiais pode fazer com que seja possível gerar 50 imagens e 50 textos diferentes sobre o mesmo produto, por exemplo, um tênis, por apenas uma pessoa em menos de uma hora. Essa pessoa pode então lançar essas 50 versões simultaneamente nas redes sociais e através de testes oferecidos pelas próprias redes entender quais são as 10 versões mais efetivas e qual dessas 10 funcionou com qual tipo de público.
Se as pessoas do grupo 1 querem se sentir aceitas em um determinado meio social, o algoritmos fará o "match" com a imagem e o texto que vendem esse ideal específico. Se o grupo 2 são de pessoas que querem alcançar bom desempenho nos esportes pois se sentem inadequados, o algoritmo irá sugerir um outro par de imagem e texto. E assim por diante. E, novamente, não importa se uma pessoa do grupo 3 receber a imagem e o texto do grupo 7 e não se interessar, pois tudo é informação útil para a inteligência artificial. Veja abaixo uma tabela inicial para entendermos as diferenças entre a publicidade tradicional e o sistema de influência atual.
Publicidade Tradicional | Influenciadores-Redes Sociais-AI | |
Organização | Centralizada | Distribuída |
Custo de Produção | Alto | Quase zero |
Tempo de Criação | Lento | Instantâneo |
Forma de Criação | Humana | Humana+AI |
Distribuição | Massificada | Personalizada |
Acessibilidade | Intermitente | Constante |
Financiamento | Anunciantes | Anunciantes, Redes Sociais, Clientes, Ninguém |
Ambiente Jurídico | Regulamentado | Desregulamentado |
Adaptabilidade | Lenta/Generalizada/ Estatística | Rápida/Personalizada/ Algorítimica |
Como Escapar Dessas Capturas?
Em síntese, a máquina capitalística só consegue nos vender seus produtos e serviços ideais se ainda acreditarmos e sentirmos que há uma falta em nós e se ainda acreditarmos e sentirmos que esta falta pode ser compensada com um objeto ou objetivo, ou seja com um ideal.
Portanto não se trata de lutar contra as máquinas capitalísticas. O combate é com o sujeito em nós que ainda acredita nessas ficções. E como se faz este combate? O primeiro passo é aprender a Espreitar. Espreitar nossas imaginações, nossos desejos capturados, nossos afetos, nossas reações habituais e padronizadas. Ao percebermos onde e quando viramos cúmplices desse sistema inoculador de falta e vendedor de salvação, temos a chance de interromper esse processo, nem que seja por um milésimo de segundo.
É neste milésimo de segundo que nasce a possibilidade de nos diferenciarmos, de abrirmos mão da vontade de poder, da vontade de ter, da ilusão de que a próxima coisa (seja ela um carro ou um retiro espiritual) vai resolver nossa vida. E não há nada de errado em ter um carro ou ir a um retiro espiritual. Não se trata aqui de uma avaliação moral, mas sim Ética. Quem em nós quer esse carro? Quem em nós precisa desse retiro? Se for um sujeito em busca de um objetivo, de um objeto, de uma salvação, estamos capturados e somos cúmplices.
A Espreita é apenas o primeiro passo. Existem outros dispositivos clínicos para nos ajudar neste processo de nos tornarmos invisíveis e incapturáveis pelas máquinas capitalísticas. Se você quiser saber mais, sugiro assistir aos videos do Luiz Fuganti no Youtube
Se você se conectou com este ou outros textos meus e quer meu apoio clínico seja para atendimento individual, de casal, apoio com os filhos, entre em contato comigo pelo whatsapp +55 11 97405-7941.
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